A literatura infantil como exercício de escrevivência
A continuação apresentamos um texto de Ayelén Medail, quem mediou o lançamento da Coleção De cá, lá e acolá em dezembro de 2022 no Espaço Saíra.
Ayelén é pesquisadora, tradutora e professora. Oriunda de Entre Ríos, Argentina, mora no Brasil desde 2012. É doutoranda em Literatura Hispano-americana pela USP, onde pesquisa os ensaios de Gabriela Mistral e Alfonsina Storni em chave ginocrítica. Traduziu Dezenove garras e um pássaro Preto e Saboroso Cadáver, de Agustina Bazterrica (Darkside), História do Leite, de Mónica Ojeda (Jabuticaba) e A arte do erro, de María Negroni, em parceria com Diogo Cardoso (100/cabeças). (fonte: https://www.acapivaracultural.com.br/)
Coleção de Cá, lá e acolá
Se o desejo é um aspecto central, nodal, do ser humano, na coleção De Cá, lá e acolá encontramos o desejo como um ponto de partida. Trata-se de um desejo de uma sociedade distinta para criar seres que não respondem a uma ideia fixa, fechada e homogênea de nação e cultura. São essas as crianças migrantes ou filhas de migrantes. São criaturas que nasceram no seio de uma família intercultural, em que são faladas outras línguas, são vivenciadas outras recordações, em que a bagagem cultural é imensa, pois quando alguém migra o faz também com a sua cultura, com seus saberes, com sua idiossincrasia e, colocar tudo isso em jogo na terra de chegada, é sempre um desafio.
É por esse desafio que transitam essas mães-escritoras da coleção e eis que encontraram, no projeto de escrever literatura infantil, um espaço para a reflexão de suas vivências. Por isso acho acertado trazer o conceito de escrevivência, da escritora afro-brasileira Conceição Evaristo, já que ela entende que na vivência de cada pessoa se escreve a vida e que na escrita se reflete o mundo que cada pessoa enfrenta. Nas páginas de cada livro da coleção, encontramos esse mundo ao qual se refere Evaristo: um mundo de preconceitos, de tensões culturais, de conflitos que as crianças que são filhas do processo migratório – um dos mais antigos e habituais da humanidade – enfrentam. Porém e além disso, essas narrativas são atravessadas pelas identidades que sobrevivem e pelas conquistas possíveis, pois não é apenas de denúncia que se conformam esses contos, mas também de possibilidades. Assim, intuo o processo de escrita desses livros como um exercício de liberdade e de democracia, pois outorga a possibilidade de registrar injustiças, dores, vitórias, alegrias, que de outra forma podem permanecer ocultas.
No entanto, quando falamos de literatura também nos referimos ao público leitor, aqueles que interagem com o texto, refletem a partir dele, tiram conclusões e levam consigo vestígios que serão aplicados no dia a dia. E com isso, não consigo deixar de trazer as reflexões de Antonio Candido presentes em um dos ensaios mais preciosos da literatura brasileira, “O direito à literatura”. Ele pontua que “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensíveis e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”. Portanto, nos deparamos com o caráter transformador da literatura que, quando pensada para um público infantil, mexe diretamente na construção de uma sociedade distinta, pois são as crianças que, a partir da leitura desses contos, conseguirão desenvolver uma outra forma de conviver com o diferente, de uma forma mais compreensível, alerta e aberta.
Porém, o público adulto também é interpelado por essas leituras. Não só porque, em muitos casos, são os adultos que leem para as crianças, mas porque também as vivências narradas impactam sobre a vida desses adultos, seja através da identificação ou da diferenciação, mas em qualquer dos casos a força de literatura educa – não no sentido moral e cívico – como a vida mesma, com altos e baixos, através de alegrias e tristezas, de luzes e sombras.
A coleção composta de cinco livros ilustrados, é produto de uma bela parceria entre a Saíra editorial e a Equipe de Base Warmis - Convergência das Culturas. As escritoras, que encontraram em Warmis um espaço de luta, chamaram ilustradoras imigrantes para trabalharem juntas no projeto. Assim a ilustração, para além do que a palavra implica, também narra e propicia novos espaços de entendimento e reflexão, a partir da preferência por personagens racializados, da escolha de traços mais ou menos difusos e da decisão da paleta de cores que cada cultura traz consigo.
Porque a coleção De cá, lá e acolá convida a estender uma ponte intergeracional e intercultural, eu vos convido à leitura desses cinco livros. Nessa caminhada encontrarão vivências gastronômicas, questões linguísticas e escolares, variedade de sotaques e costumes, e a possibilidade de, naturalmente, como é inerente às infâncias, aceitar, compreender e amar as outredades.
Ayelén Medail,
São Paulo, dezembro de 2022.
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