Após o fim do mundo
Este é um pequeno conto de ficção científica que narrei no podcast Prato Feito, da Acepusp, a convite da Lahayda, Mamani também. O programa pode ser ouvido aqui.
Natali Mamani, indigena Aymara, imigrante boliviana. E sobrevivente do apocalipse. Espero que esta transmissão lhe encontre bem. Hoje eu venho ler uma carta que escrevi no ano dez, após o fim do mundo. Venho contar uma série de acontecimentos que vivemos no começo do fim, durante e depois do fim. Espero assim, poder transmitir algo de significativo para quem ouvir este relato.
Após o fim do mundo
Em 2059, todos estávamos com medo do rumo que a humanidade tinha tomado. Todos de alguma forma, sabíamos há muito tempo que o nosso tempo havia terminado.
Eu lembro bem, porquê fui consumida por aquele sentimento. Um dia eu estava sentada no sofá enquanto via as notícias de manhã: número de mortos pelo vírus, número de mortes pela guerra no oriente médio, números de mortos pela polícia… números. Números e mais números, era o que éramos. A humanidade finalmente havia se tornado um ser sem corpo, apenas dados binários, que eram consumidos como valor capital na internet. Era isso o que éramos?
Como pudemos nos submeter a um estado tão vazio? Foi nesse instante, em meio a um questionamento aterrorizante que um calafrio horrendo, como espinhos perfurando por dentro da minha pele, tomou conta de mim. A sensação de queda era profunda e paralisante, senti tontura, senti meu corpo sumir. Senti que o fim havia chegado para todos. Não senti apenas que eu ia morrer, mas senti que todos morreríamos.
Era claro, limpo, frio e concreto. Assim como a verdade.
Eu chorei, como quem chora a perda de um ente querido.
Cinco anos depois, mais da metade da população tinha morrido, seja por alguma das variantes do vírus, pelas guerras ou por unir-se a protestos nas ruas. Diversos países haviam se posicionado como governos autoritários, ditaduras.
Mas, apesar do caos que percorria as ruas do nosso planeta, foi em um desses protestos que conheci uma grande amiga, ela também estava esperançosa sobre o nosso futuro. Era o terceiro ano de um governo ditatorial, e o segundo ano de manifestações consecutivas que ocorriam por todos os países ao redor do mundo. Grupos e pessoas de diferentes segmentos, causas e lutas estavam presentes. Cada um levava uma bandeira ou uma faixa na cabeça, esta tinha um símbolo central que representava a união das lutas, criou-se uma força tão grande que nenhum de nós achou que fosse possível criar. Nenhum de nós era mais o mesmo de cinco anos atrás, nossa união era nossa esperança.
Nesse dia, estávamos a caminho da inauguração de um novo símbolo, um que seria colocado no centro do local onde antes havia um grande monumento da colonização. Do local onde estávamos, olhando dali à distância, eu conseguia ouvir nossos aliados confrontando os militares, impedindo-os de invadir a área onde o ato ocorria. Algumas pessoas gravavam o momento, outras faziam uma transmissão ao vivo através de uma rede social independente. Ouvíamos mensagens deixadas por diversos países, greves por toda parte, alguns governos caíam. Pessoas choravam. Outros sorriam. Ouvia-se: “se vamos morrer será pela vontade de viver”. “Somos humanos, seres vivos”. “Nenhum ser humano por cima dos outros e nada por cima do ser humano”.
Os gritos ecoavam pela multidão. Ao horizonte, em frente ao local que se levantava a homenagem aos milhares de mortos, ouviu-se uma voz – “Vamos começar o minuto de silêncio”. Os militares ao verem a cena se calaram e sentiam o medo. A mesma sensação que eu já havia sentido, de que tudo estava acabado. Quando o minuto cessou, ouviu-se um grande grito – Ouçam! Nós conseguimos! Nós conseguimos! Lágrimas caíam pelos olhos de todos, nossas mortes, nossas lutas, nossas greves quebraram o sistema capitalista. O dinheiro havia perdido seu valor de troca em mais da metade do mundo, com isso a maior potência comercial estava em colapso. Sem valor, o dinheiro não significa nada. Todas as empresas, por mais poderosas que fossem, estavam em queda.
Todos choravam.
Alguém notou que as redes sociais haviam caído, sem ter como mantê-las em funcionamento elas também desligaram. Não obstante nossa rede independente seguia em conexão, comunicando-nos que cenas semelhantes às que víamos ocorriam ao redor do mundo. Em certos lugares via-se militarem desistindo do enfrentamento, em outros eles resistiam com pouca força. A cada momento mais governos ditatoriais, corruptos caiam. Os representantes das diversas lutas e forças iniciavam a voz ao futuro da nova mudança da sociedade, lembrando-nos que a partir de agora teríamos todo o tempo para nos estruturar do zero. Alguns sintonizavam as rádios, redes de televisão aberta, que informaram a queda do sistema capitalista, apresentadores declamavam despedidas aos prantos, alguns mais orgulhosos da conquista, proclamavam que a humanidade havia vencido hoje. Aqueles que foram destituídos de seus cargos políticos corriam e eram apreendidos por aliados, outros entregavam-se. Eles seriam julgados e pagariam à sociedade por seus crimes.
Nós, havíamos nos preparado para este momento, durante os últimos anos grupos de organização horizontal e rotativa foram criados. Porta vozes eram os responsáveis por concentrar os comunicados que representavam o grupo, a cada reunião uma nova pessoa era a responsável pela função. Sobre a nova forma de troca, cada um ia se adaptando e encontrando a melhor forma para isso. Já fazia alguns anos que muitos deixavam de utilizar o dinheiro ou usavam apenas em casos necessários, pois sabíamos que um dia ele não seria mais útil, o dinheiro perderia seu valor simbólico e capital. Tínhamos um novo mundo a ser construído a partir das lutas, do respeito, compreensão, empatia, do colocar-se no lugar do outro, tratar os outros como quer ser tratado. Ouvir e ser ouvido.
Dois anos depois, começamos a instaurar novas formas de organização política e social. Alguns países se desmembraram por estados ou regiões, cada local e ambiente social ia se organizando de maneira que visava o melhor cenário para todos. Assim como a singularidade de cada ser humano, devemos respeitar as características de cada ambiente social, e este deve respeitar os demais. Não causando sofrimentos aos outros e aos seus e nem a si próprio.
Não existiam mais países, e nem fronteiras, muitos tornavam-se nômades ou recolhiam-se nas florestas a fim de preservá-las. Marcas da colonização eram curadas, linhas territoriais impostas eram destruídas. Valores sociais eram mudados, leis governamentais eram queimadas e outros escreviam o novo conjunto de direcionamentos para a sobrevivência humana e do Planeta Azul.
Seis anos depois, eu estava sentada em uma cadeira velha, na minha pequena sebo de troca de livros. Onde as pessoas vinham me oferecer livros de vários temas e gêneros literários, em troca de algum outro livro que eu pudesse oferecer. Alguns visitantes simplesmente deixavam seus livros para sempre ou vinham buscar outro depois. Outros que não tinham livros, mas queriam algum, ofereciam coisas diversas para a troca. Às vezes eu pedia que me contassem uma história, um conto, um sonho, em troca do livro desejado. Como estava escrevendo o roteiro do meu novo filme, coletar histórias era um dos melhores caminhos para inspiração e referências.
Uma tarde, uma das pessoas com um sobrenome Mamani, como o meu, me disse que na região onde antes havia a Estátua da Liberdade estava tudo cheio de mato. As árvores crescem cada vez mais depressa. E na rede social independente, fotos de centro comerciais que já não existiam e prédios enormes, eram tomados por animais e plantas.
Tudo havia mudado ou estava mudando. O humano aprendeu a viver neste novo mundo, lutamos todos os dias contra nós mesmos. Nos amávamos, nos conhecíamos. Tínhamos empatia por nós e pelos outros, por cada ser da natureza. Prezamos pelo não sofrimento e por não causar sofrimento a qualquer ser vivo ou a nós enquanto indivíduo. Assim, cada dia, ano, íamos entendendo que éramos a causa do fim, mas também do início. Sabíamos que deveríamos preservar o lar de nossa existência. Com esse pensar avançamos cada vez mais, o humano era a esperança de um futuro ainda melhor.
É assim, que eu, sendo sobrevivente da colonização em 1500, sobrevivi ao apocalipse e hoje vivo o renascer da humanidade.
Carta para Silo, ano 10 após o Fim.
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