Desafio às fronteiras
Estimulados pela possibilidade de novos e promissores cenários de trabalho, lazer, segurança e família, 232 milhões de pessoas já vivem fora de seus países de origem. mas será que são realmente compreendidos e igualmente aceitos nas nações que os abrigam, legal ou ilegalmente?
POR: ADRIANA MARCOLINI 03/01/2014
Apesar de mal conhecida no Brasil, a emigração de mulheres eslovenas para o Egito, entre o final do século 19 e o começo do 20, é um dos capítulos mais comoventes dos fluxos migratórios laborais, motivados pela combinação da falta de mão de obra com a necessidade de trabalho. Durante a segunda metade dos anos 1800, a inauguração do Canal de Suez agitou a cidade egípcia de Alexandria. Empresários europeus começaram a se mudar com suas famílias para a cidade, o maior porto do Egito. Uma nova configuração humana, burguesa e de traços europeus, delineava-se com suas exigências domésticas. Foi assim que quase 6 mil mulheres da região de Goriska, hoje na Eslovênia, emigraram para a cidade. As Aleksandrinke, como elas ficaram conhecidas, trabalhavam como governantas, empregadas domésticas, cozinheiras e babás. Seus salários eram pelo menos o dobro do que na terra natal, o que lhes permitia ajudar suas famílias. A maioria voltou para a Europa após longos anos. Algumas morreram no Egito.
Embora com outras características, esta história de perdas e separações familiares, mas também de ganhos e de trocas, como, aliás, acontece com todas as migrações, continua a se repetir nos dias atuais: nipo-brasileiros no Japão; bolivianos, portugueses e espanhóis no Brasil; filipinos no Oriente Médio; mexicanos e latino-americanos nos Estados Unidos; africanos na Europa são apenas alguns exemplos dos fluxos de hoje. Vistos como vítimas por alguns e como corajosos por outros, os migrantes – tanto os que se deslocam dentro do próprio país quanto os que vão para o exterior – saem em busca de oportunidades. No fundo, são sujeitos de sua própria história. Deixam a comodidade de casa para criar novos vínculos de amizade, de família, de estudos e de trabalho.
A diversidade dos fluxos atuais equivale à variedade dos projetos migratórios dos sujeitos migrantes. A homogeneidade não existe. Atrás de cada migrante existe uma história, uma trajetória diferente. A maioria das pessoas migra para trabalhar, mas também há aquelas que o fazem para estudar ou, simplesmente, para casar. A contemporaneidade trouxe novas perspectivas. Os constantes deslocamentos redesenham a geografia e põem em xeque o próprio conceito de pertencimento, como mostra a artista e escritora brasileira Marie Ange Bordas, autora do projeto Deslocamentos: uma série de reflexões, fotos e instalações criada como resultado de anos de convívio com pessoas deslocadas em campos, abrigos e cidades da África e da Europa. As identidades homogêneas, “autênticas”, enfraqueceram. Somos impregnados de influências de outros lugares; nossos espaços são modificados pela releitura local de fenômenos globais. As redes que se tecem entre os migrantes de hoje podem levá-los para um país diferente daquele que inicialmente haviam escolhido. O “mundo mundo vasto mundo” do Poema de sete faces, de Drummond, encolheu. As viagens aéreas e a internet facilitaram os deslocamentos. As empresas de envio de dinheiro para o exterior se disseminaram.
No entanto, apesar de ter encolhido, o mundo se fecha. É um paradoxo, observa o crítico literário indiano Homi Bhabha, que os direitos das pessoas que estão no centro da vida da população dos países ricos, exercendo funções como cozinheiras de suas casas, cuidadoras de seus idosos e babás de seus filhos, sejam restringidos. Novas barreiras surgem na Europa, como os muros e as cercas elétricas construídas para impedir a entrada no Velho Continente daqueles que tentam fugir da penúria e da falta de liberdades políticas na África. Os Estados Unidos também têm a sua barreira estrategicamente erguida na fronteira com o México – o “Muro da vergonha”, como ficou conhecido entre os naturais deste país. No ano passado, várias iniciativas foram tomadas para reprimir a circulação dos migrantes. Mais de uma vez, a Rússia procedeu a prisões massivas dos que estão em situação irregular. O Reino Unido anunciou a restrição de benefícios a imigrantes europeus. E a União Europeia estabeleceu novas regras para o Espaço Schengen, o acordo que garante a livre circulação de cidadãos (europeus e não europeus) entre os países signatários a partir de janeiro de 2014. Toda vez que um país julgar necessário, poderá reintroduzir controles fronteiriços por até dois anos.
Mas os migrantes, seres movidos por sonhos e energia, acabam encontrando formas de contornar os entraves e descobrir novas rotas para chegar ao destino escolhido. Hoje, o Mar Mediterrâneo se tornou praticamente a única porta de entrada para os africanos pobres. Nem sempre, porém, o plano dá certo. Esse foi o caso da catástrofe ocorrida nas proximidades da ilha de Lampedusa, na Sicília, Itália, no último mês de outubro. Uma embarcação com cerca de 500 africanos pegou fogo e naufragou, deixando cerca de 360 mortos. Alguns dias depois, outro barco naufragava na mesma área, provocando a morte de 50 pessoas, paralelamente, 92 corpos eram encontrados no deserto do Saara. Eles tentavam atravessar a região, para seguir rumo à Europa, mas o carro que os transportava quebrou. Morreram de sede.
Os naufrágios desse tipo em Lampedusa são recorrentes. Desta vez, porém, a proporção gigantesca da tragédia chamou a atenção do mundo todo. Para o professor Helion Póvoa Neto, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), as políticas securitárias europeias cumprem o papel não só de tentar barrar a entrada de migrantes, mas também de sinalizar para os migrantes “potenciais”, em suas áreas de origem, que eles não são bem-vindos. Ao mesmo tempo, frisa o professor, a construção de barreiras, as patrulhas marítimas e a instalação de centros de permanência ou detenção para migrantes atendem a um anseio de parte considerável da opinião pública europeia. Ele reforça que várias forças políticas prosperam na Europa hasteando a bandeira da defesa dessas medidas.
Países do sul
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 232 milhões de pessoas, ou 3,2% da população mundial, residem atualmente fora de seus países de origem. Trata-se de um aumento significativo se comparado aos dados de 1990, quando os migrantes internacionais eram 154 milhões. Já o Relatório Mundial das Migrações 2013, documento divulgado em dezembro pela Organização Mundial das Migrações (OIM), revela a intensificação dos movimentos migratórios dos países do Hemisfério Norte para o Hemisfério Sul e entre os próprios países do Hemisfério Sul. Esses fluxos equivalem a cerca de 82 milhões de emigrantes. O relatório aponta que o Brasil é o país da América Latina que mais tem atraído fluxos migratórios de fora do continente – a maioria do Japão, Portugal, Reino Unido e Estados Unidos.
“O crescimento econômico no sul e a crescente restrição aos imigrantes nos países do norte levam a isso”, afirma Póvoa. No que diz respeito às migrações dentro da América Latina, o professor cita o exemplo da Argentina, onde o fluxo transfronteiriço começou bem antes que no Brasil e contribuiu para que o governo de Buenos Aires aprovasse, em 2004, uma nova lei migratória, em conformidade com os tempos democráticos. “No caso do Brasil, a mudança da lei acontecerá apenas na medida em que a questão imigratória seja assumida como central pela opinião pública, pelos representantes no Parlamento e pelo governo”, explica. A lei brasileira é de 1980, época regida pela ditadura militar, e ainda está em vigor.
Preconceito
A web designer boliviana Jobana Moya, 32, mudou para São Paulo em 2007, depois de se casar com um brasileiro. Hoje grávida do segundo filho, já passou por situações de preconceito nos serviços públicos, no metrô, em lojas e bares. “Até hoje, quando estou ao lado do meu marido, algumas pessoas nos olham de forma estranha”, conta. Para ela, o sexo feminino é mais suscetível a sofrer preconceito simplesmente pelo fato de que as pessoas se sentem mais confiantes para tratar mal as mulheres e pensam que elas não reagirão. Na opinião de Jobana, é necessário educar os brasileiros para o respeito e a valorização da diversidade. “Somos discriminados porque pensam que somos diferentes.” A fim de promover o diálogo entre as culturas, ela fundou em São Paulo o grupo Warmis (“mulheres” no idioma quíchua), que congrega imigrantes latino-americanas. Bandeiras como o direito ao parto natural, comum na Bolívia, mas cada vez menos praticado no Brasil, estão entre os temas do grupo.
O refugiado colombiano David Hernández, que chegou ao Brasil em 2002 para escapar aos conflitos em seu país, considera que existe falta de informação na sociedade brasileira sobre o significado do termo refugiado. “Confundem-nos com fugitivos”, afirma. “Mas só sofre preconceito quem adota uma postura subalterna.” E completa: “Não é o meu caso”.
Já o engenheiro espanhol Carlos Porto, no Brasil desde 2011, já recebeu (involuntariamente) tratamento diferenciado em um serviço público de São Paulo só pelo fato de ser europeu – a chamada “discriminação positiva”. Ele se considera um “aventureiro”. Já estava na Irlanda havia dois anos quando conheceu uma brasileira que o fez mudar de rota. Os planos de ir para a China foram por água abaixo e o Brasil se tornou seu novo destino. Natural da Galícia, região de forte emigração no passado, nutre simpatia pelos bolivianos: “Eles são o que os galegos foram outrora.”
Para Póvoa Neto, a postura dos brasileiros em relação aos imigrantes tem sido avaliada, ao longo da história, como receptiva e sem maiores conflitos. “De fato, nosso país não é marcado, na mesma medida, pelas divisões étnicas, raciais ou nacionais que, em numerosos países, dificultam a convivência entre diversos grupos sociais”, afirma. No entanto, sublinha: “Fatos recentes levam a atentar para a possibilidade de que o preconceito ou o racismo contra o boliviano, o haitiano e o chinês assuma uma proeminência na medida em que estes ‘novos imigrantes’ desempenhem uma posição mais central em nossa sociedade”.
Efeitos psicológicos
O psicanalista junguiano Roberto Gambini, que estudou a fundo os efeitos psicológicos provocados pela emigração nos italianos, pensa que os brasileiros nutrem preconceito pelos bolivianos para se sentir superiores. “Sempre nos sentimos inferiores em relação à Europa e agora adotamos uma postura de superioridade em relação aos nossos vizinhos”, diz. “Precisar degradar o outro a fim de se sentir bem é uma atitude mesquinha, humana, mas é assim que funciona”, explica. O especialista avalia que os haitianos devem ser os que mais sofrem preconceito no Brasil, uma vez que são negros e pobres. Ele acredita que o ato de emigrar provoque um impacto profundo em quem faz essa escolha. “Os níveis mais profundos não chegam a ser detectados”, afirma. E conta que emigrar pode gerar sentimentos de perda da identidade e da alma. “A emigração pode ainda provocar um apagamento do passado, como aconteceu com muitos judeus que precisaram fugir da Europa”, conclui.
Apoio a migrantes retornados
A psicóloga paulista Sylvia Dantas viveu a migração na própria pele. Por conta dos compromissos profissionais do pai, nasceu nos Estados Unidos, mas veio pequena para o Brasil. Quando estava com 10 anos, voltou para os EUA. A estadia de dois anos lhe ofereceu a possibilidade de estudar em uma escola pública americana e vivenciar o que é ser aluna estrangeira. Mais tarde, trabalhou nas escolas públicas dos EUA que adotam o sistema bilíngue inglês-português e pôde conhecer o ambiente e a realidade das crianças imigrantes. Realizou sua pós-graduação em psicologia e doutorou-se na Universidade de Boston com uma tese sobre as famílias imigrantes brasileiras nos Estados Unidos. Sylvia Dantas é professora de Psicologia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Baixada Santista, na cidade de Santos, e dirige o Núcleo de Pesquisa e Orientação Intercultural da universidade. O grupo, formado por dez alunos e professores de psicologia e serviço social, presta atendimento psicológico gratuito a imigrantes no Brasil, brasileiros descendentes de imigrantes e a “retornados”, ou seja, brasileiros que viveram fora do país e voltaram. Entre os estrangeiros atendidos, a maioria é formada por mulheres entre 20 e 30 anos, principalmente do Canadá, Estados Unidos e Inglaterra. “Para os imigrantes desses países, o jeito de ser do brasileiro, com uma proximidade física maior e comentários de assuntos pessoais no ambiente de trabalho, é considerado invasivo”, relata. “Mas também há casos de bolivianos e africanos que entram em depressão pelo fato de serem discriminados.” Já entre os retornados, há muitas famílias de descendentes de japoneses. “Muitos não se sentem nem brasileiros nem japoneses, pois aqui são chamados de ‘japas’ e lá são tratados como estrangeiros e sofrem preconceito”, observa. No caso dos nipo-brasileiros, Sylvia salienta que a readaptação e a inserção no mercado de trabalho não é fácil, principalmente para aqueles que trabalhavam em fábricas. O serviço de apoio psicológico para imigrantes e retornados vai começar a ser oferecido na cidade de São Paulo a partir de 2014. O contato é
Fonte: Revista da Cultura
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