Racismo estrutural (susceptibilidade, veracidade ou o que?)
Tradução do artigo de Chana Mamani, para LatFem em junho de 2020.
Por que precisamos falar de racismo estrutural? Porque por nossa linguagem, nestes tempos, corre o ódio e nele desprende-se não só as agressões racistas, também levam a aniquilação de corporalidades. Desde o ativismo em torno da identidade marrom (filhxs, nietxs de indígenas/originários, caipiras, de migrantes racializados, periféricos, das vilas, empregadas domésticas) constrói-se identidade e política, para desenrolar a “larga história” da invisibilidade e da opressão. Diz Chana Mamani neste ensaio centrado no pensamento decolonial: nossos ancestrais não desceram dos barcos, sempre estiveram aqui.
Palavras que as pessoas dizem, palavras que as pessoas escutam, palavras que as pessoas repetem, palavras que a obedece. [1]
Mais perto da cintura, como larva sem voz impaciente estourou -es boliviana, pensei que você era jujeña, ah saltenha, não? Veja só, es peruana! Perdoe-me a moléstia, meu lengüetazo marrom, é dadouro de sentidos, pois te sentia pertinho e meu nariz se desvestiu na curva da tua lua. (…) Pois, daqui a pouco, por se o acaso, também somos procriadoras de aparentemente 1 milhão de crianças-negrxs-marrões-indígenas-estrangeiros. Sim todxs! Que circulam até nas verduras da sua roupa. [2].
A intenção deste breve ensaio, por um lado é desenrolar o racismo estrutural que se encontra em nossos contextos, nesses lugares que permeiam a urbanidade, cuja a mistura se trama desde a arquitetura das casas até as envergaduras (mais estranhas) vertidas nos guisados e nas sopas. Desde o eco das políticas públicas, até algazarra de uma reunião com amigues. Mas no outro, levar a reflexão mútua, a tecer essas formas micropolítica para entrever “do saque e desencanto político”, uma confiança coletiva possível, habitável e antirracista.
Para isso coloco em cena, através de vinhetas, como diz o autor de Derald Wing Sue (2010) “a mensagem oculta” que opera nos vínculos, nos corpos e que em ocasiões (todas) nos colocam nesse binarismo: da dúvida ou a negação. Colocarei em palavras, isso que não se diz, mas se palpita ou respira: os microracismos.
Microracismos do racismo estrutural
Vinheta 1: Entre estudante e docente da Universidade}
Docente: Ah, Mamani. Boliviana, não:
Estudante: Não, não sou boliviana.
Docente: Peruana:
Estudante: Mmmm, também não, sou de Jujuy.
Docente: Mas a sua família com certeza são… Do Peru ou Bolívia:
Estudante: Não, não são.
Docente: Bom….talvez algum parente longínquo, certeza.
Estudante: Não, todes nasceram aqui.
Docente: mmm…certeza algum que talvez você não conheça esteve por lá perdido.
Estudante: Não, todes nasceram aqui.
Docente: Mas, você é Mamani, historicamente de lá.
Estudante: Sim, sou Mamani, mas sou daqui e não sei que história é essa.
Vinheta 2: Entre amigas.
R: Existe água na tribo onde você mora com sua família?
M: Sim, mas não é tribo.
R: Mas como fizeram para ter água?
M: Abrem a torneira e sai água.
R: aah mas, super avançado para ser tribo, Cool.
M: mas não vivo em uma tribo e sei lá o estado que colocou e temos água.
Vinheta 3: Companheire de ativismo
A: Você é de Jujy, não?
B: Não, não, sou boliviana.
A: Ahh! Mas você fala tão bem! …nem parece!
B: sim, falo espanhol como você.
Vinheta 4: No local de trabalho do Estado-Nação.
A: Hoje atendemos até as 15.
B: Sim, eu sei, mas…
A: E o que você procura?
B: A ninguém. Sou trabalhadora social, trabalho aqui,
A: ahhh, bom acontece.
Vinheta 5: Entrevista de emprego
B: Subo no 9 andar, tenho uma entrevista.
A: cadê seu RG?
B: Mas… você não pediu pro resto que também tem entrevista.
A: Mas, pra que você veio?
B: Tenho uma entrevista de emprego.
A: A de limpeza, não?
B: Não, de advogada.
A: ahh olha só você!
[3] Raça, racismo, etnia? invenção da modernidade
Autores do pensamento decolonial [4] (Dussel, E., Quijano, A., Grosofoguel, R., Lugones, M., entre otres) mantém (e coincido) que o racismo é invenção da modernidade “a ideia da raça é, com toda certeza, o mais eficaz instrumento da dominação social inventados nos últimos 500 anos.”(Quijano, A. 2011, p. 1). Primeiro foi a colonização e logo o capitalismo durante os séculos XV, XVI e XVII, instauram não só a dominação colonial europeia se não a maneira de ver e classificar o mundo. Serão as bases do eurocentrismo que logo se forjaram na venda, intercâmbio e exploração das forças de trabalho: a colonialidade foi construída na pedra fundacional do padrão de poder mundial capitalista, colonial/moderno e eurocêntrico (Quijano, Aníbal 2011).
Nesse sentido, o autor quechuaymara Fausto Reinaga (1970) em sua grande obra “A revolução India” [5] manterá que esse sistema de dominação e classificação da Europa produziu uma sangrenta matança e saque em territórios como Ásia, África e América latina, fortalecendo-se de uma só história, uma só cultura e uma só raça. A história universal é a história da Europa: Para seu etnocentrismo, a raça e a cultura por excelência são às deles. Sua clássica divisão na antiga, média e moderna baseia-se em acontecimentos europeus. Os demais povos, alheios/longe de sua área, vem a ser os marginais, consequentemente bárbaros (…). Todavia ficam classificações mais depreciativas: selvagens, primitivos, “naturais”, indígenas. Sempre no sentido de seres inferiores, sub-homens” (Reinaga, F. 2010, p. 81).
Assim como estes autores decoloniais, o sociólogo aymara Pablo Mamani Ramírez (2006), em seu trabalho “Dominação étnica, de classe e territorialização do poder indígena na Bolívia”, afirma que na modernidade se cria uma realidade social na qual se entrelaçam duas formas de dominação: classe e etnia. Explica que a modernidade produz colonialidade, e que por sua vez, está se encarrega de produzir e reproduzir no mercado – como espaço capitalista e colonial-; a socialização das relações de dominação e exploração. A relação da chamada totalidade concreta e que já não é possível observar as formas de dominação.
Então, esse lugar “grande invenção” situada nessa época das luzes, no apogeu do Renascimento, esse “sistema mundo colonial” produziu “uma profunda colonialidade manifestada no racismo anti-indígena, a discriminação, o genocídio e o etnocídio.
Nesses territórios cicatrizam as raízes profundas desses corpos silenciados. Corpos que à medida que aparecem visíveis, se amordaçam as línguas, pois subjaz essa “mordaça”, para âmbitos do conhecimento/poder, seu “não saber/bárbaros/selvagens” ou só os designam direitos, a esses corpos, por algum feito inapropriado.
Assim entendo que nesse enramado do racismo estrutural palpitam contradições que vamos experimentando cada vez mais latentes sobre corpos e direitos:
“Os conceitos de liberdade, democracia, cidadania, justiça e direitos humanos, princípios fundantes da modernidade, que serviram para sustentar e invisibilizar a dramática exploração e dominação dos povos indígenas e os negros” (Mamani R. Pablo, 2006).
A dominação impacta e atravessa os corpos, ao que não se aniquila se disciplina, por momentos se os reconhece (outorgando-lhe RG) para a força de trabalho a que historicamente foi-lhe designado essa “zona do não ser”.
Racismo estrutural: desenrolando zonas do ser e não ser
O racismo estrutural caracteriza-se por negar ou ocultar a existência do racismo. É dizer, trata-se de processos históricos que através de um conjunto de fatores, valores, símbolos e práticas, produzem e reproduzem estereótipos (legítimos e não legítimos) colocando a um grupo de pessoas por cima do outro. Assim, normalizasse e legitima-se certas ações onde privilegia-se o setor e exclui-se a outro baseando-se no fenótipo, na nacionalidade, na cultura, na religião, lugar de residência, classe, sexo e género.
Está maneira “estendida” de conceber as formas em que adquirisse o racismo nos possibilita, por um lado, ter uma leitura mais situada (no universal) sobre as origens e impactos deste, e por outro lado observar, cuidadosamente, desde os próprios processos históricos e as trajetórias dos territórios que foram colônias/colonizados, na qual existe esta hierarquia de um grupo sobre o outro, o que também poderia entender-se como racialização dos corpos.
Se bem a característica do racismo – invenção da modernidade – é a “cor”, existiu e existe como a mencionaram Grosfoguel, R. (2011) e Fannon, F. (2010) uma hierarquia que pode ser construída/marcada de diversas formas. Assim, por exemplo, “na história colonial irlandesa, os britânicos construíram sua superioridade racial sobre os irlandeses não através de marcações de cor de pele senão através da religião. O que parecia em aparência um conflito religioso entre protestantes e católicos era de fato um conflito racial/colonial. O mesmo pode-se dizer da islamofobia na Europa e nos Estados Unidos hoje”(Grosfoguel, R. 2011, p.1). Então, é possível encontrar em algumas regiões uma hierarquia etno/racial de superioridade/inferioridade designada pela “cor da pele” e em outras pela religião, linguagem e cultura. Nesse ponto é interessante mencionar o que Fannon (2010) denomina como “a zona do ser” e a “zona do não ser”: no primeiro situa as pessoas que se encontram em um privilégio racial enquanto em no segundo estão aquelas que vivem a opressão racial. A sua vez, desde uma perspectiva interseccional, estas zonas influenciam nas experiências opressivas do grupo de pessoas que estão nas zonas dos não ser por sua condição de classe, sexo e gênero e dependem do sistema mundo capitalista/patriarcal ocideontecêntrico/ cristianocêntrico moderno/colonial (Grosfoguel, 2011). A modo de exemplo, as comunidades indígenas nos Estados Nação, como Argentina, experimentam uma opressão racial, ela resulta mais palpitante nas mulheres indígenas [6] por sua condição de gênero e sexualidade.
É necessário, nestes tempos que nos interpelam violências e gozos tingidos de ódio ao diferente, à esse sistema de classificação que pouco a pouco vai limitando “isso” que chamamos de pessoa.
Em um de seus capítulos Reinada (2010) põe ênfase nesta origem e esta divisão do ocidente, deste eurocentrismo que classifica pessoa e não pessoa.
“O Ocidente não permite ao ‘indígena-natural’ olhar de frente ao ‘branco’. Quando os ‘indígenas-naturais’ lhes olham aos olhos as ‘feras brancas’ matam”. (Reinada, F. 2010, p. 81).
Bem, agora, voltando às cenas descritas, podemos observar essa contextura do racismo estrutural, que inclusive com maior solidez, encontra-se nos vínculos afetivos e em momentos se atreve essa hierarquização
Existe aquele refrão que diz “que não existe pior cego do que o que não quer ver”, e algo disso observamos quando frequentemente se interpela essa estrutura que como tal foi sustentada por todo um sistema, primeiro colonial e logo capitalista que perpetua-se nessa pele universal e atravessa-se a consciência do “não ser”. Aquela ação de ver traz consigo irremediavelmente a lembrança, a memória e como tal existe uma origem = passado. É aí onde podemos/devemos situar-nos se queremos, efetivamente, ter humanidade. Nesse passado (como dirão as awichas/avó), nessa memória que “puxa” encontramos a conformação territorial Argentino como Estado-Nação. Desde a invasão, o extermínio, a desolação das Campanhas de Deserto, até a ocupação e construção de um projeto nacional universal. Van Dijk (2007) aprofunda a respeito referindo-se sobre os processos históricos que formaram a sociedade ou Nação Argentina: “a mesma que desde a ideia do “caldeirão de raças” ou o “ideal civilizatório” moldou o imaginário do “enclave europeu da Latinoamérica” e que designou as povoações não brancas aos extremos sociais de menor oportunidade”. E nesse sentido agrega-se que “ao redor do racismo estrutural se naturalizam diferentes mecanismo cotidianos de discriminação, predominando a tradicional exclusão racial e de classe, dos quais são objeto, principalmente, as pessoas imigrantes de países fronteiriços e do Peru, as pessoas de tez escura, aos descendentes dos povos originários e as pessoas em situação socioeconômica de vulnerabilidade na Argentina” (Teun A. van Dijk, 2007).
Assim, vai se construindo a naturalização da desigualdade; a pobreza adquire uma cor (marrom [7]), e de acordo ao lugar de origem, sexo, lingua e gênero o destino pré-estabelecido torna-se fácil, pois será com o chama Frantz Fannon (2010) “a zona do não ser”. Em consonância ao mesmo o autor Michel Wieviorka (2002) agrega que os membros dos grupos vítimas do racismo ficam confinados a postos subalternos na vida economica e política, ou sofrem discriminação na área de emprego, assim como no campo da moradia e da educação. Para que esse vínculo ocorra, entre pobreza e “cor”, é necessário pensar isso como um processo próprio organizativo e reconfiguração do pensamento colonial ao qual o autor Jean Pierre (2018) denomina “etnização da pobreza”. Assim, é possível que aqueles que são excluídos do “bem estar do poder” estejam excluídos como trabalhadores explorados ou potenciais exploradores:
“Um índio ou um negro não é pobre, porque está em necessidade ou estado de privação, senão por ser índio ou negro e sua condição histórica na relação de produção econômica e social. Enquanto o mestiço ou um crioulo pode ser pobre, por sua posição histórica de dominação e de riqueza, não é considerado socialmente como alguém em necessidade” (Pierre, J. 2018, p.17).
Isto explica esse emaranhado que muitas vezes se universaliza à condição de ser pobre e se mantém nosso imaginário coletivo que lê e encontra a pobreza por seus traços e seu “pertencimento” cultural e não tanto pelos fatores estruturais.
O racismo adquire cor e nação: migração racializada
Pois, o silêncio que oculta nas suas mensagens “politicamente corretas como “não existe cores”, “todos somos iguais” ou o mais conhecido “não existe racismo/não somos racistas, mas” pode levar da zoação estendida a uma desumanização profunda com um fim letal. Exemplo disso são: a morte de Marcelina Meneses e seu filho Josua [8] e Franco Zárate [9]. Ambos casos ocorridos em um Janeiro de muito calor, com 14 anos de diferença, a primeira arremessada do trem -junto ao seu filho- com agressões racistas por seu lugar de origem e o segundo com uma arma de fogo com agressões racistas “acreditando” que “era” do mesmo lugar de origem: Bolívia “a india”.
Esses feitos não ocorreram em um âmbito privado, senão em espaços públicos, não era por falta de segurança ou em um cenário de completa escuridão, senão que havia tanto luz do sol como luz artificial, não estiveram as forças de segurança ou aquelas vindas do Estado, senão que ocorreram em vínculos próximos (passageirxs de transporte público, vizinhxs do bairro), e não houve indignação senão um silêncio social com marcas de negação e assinalando a responsabilidade àqueles que habitam a “zona do não ser”.
Assim o racismo adquire a “cor” da nação, aquela que expressa “o selvagem” que não pertence a esse território e a essa nação “pura” senão que é de fora/forasteiro/estrangeirx. Nos interpela e encontra em um contexto no qual vai reinando um medo/ódio ao diferente e uma busca espiritual do nacional/normal como o seguro. Exemplo disso são os casos ocorridos na República Dominicana, Brasil e Bolívia.
A autora Sara Ahmed (2015) ao explorar e analisar o contexto australianos e o Reino Unido, em seu capítulo “a organização do ódio” explica como através de discursos do fascismo vai se construindo narrativas que justificam esse ódio ao outro (diferente). Essas narrativas mostram não somente a justificativa e a perseguição desse outro senão que revela no lugar de vítima das leis e do sistema de governo ao “o nacionalista Branco, o homem Branco classe média, a dona de casa Branca, o trabalhador Branco, o cidadão Branco e o agricultor Branco Cristão”(Ahmed, S. 2015, p. 78).
Trata-se desse afeto que é produto da história e que Ahmed diz ser efetiva. Vemos isto traduzido em todas as agressões racistas o as ações implementadas pelos Estados-Nação frente a migração que comporta “cor” (negro/marrom) não desejada: “esse outro sujeito é um sujeito a quem alguns, outros imaginados, põe em perigo e cuja proximidade ameaça não só com tirar-lhe algo (empregos, segurança, riqueza), se não com ocupar o lugar do sujeito. A presença desse outro é imaginada como uma ameaça” (Ahmed, S. 2015, p. 78).
A autora põe ênfase em como ditas mensagens contribuem a sentir essa motivação tirana, esse afeto externo do amor pela nação por parte dos “brancos arianos” e o ódio a outros os quais “pretendem roubar-lhes a nação, sua história, seu futuro”. Com similitudes a hora de narrar esse outro por sua cor e por sua nação, no contexto latinoamericano cada vez e com maior agudeza encontra-se e emerge a geo-etnização e racialização das relações sociais (Pierre, J. 2010). Esta lógica utiliza-se para explicar e justificar que os problemas da pobreza, da desigualdade, inseguridade, epidemias, são “culturais” e derivam desse outro (corpo marrom/negro). Esse autor agrega coincidindo com Balibar (1991, 33) que “não há racismo sem teorias”, ao assinalar que “o racismo precisa sempre da ajuda científica para representar o outro, como algo não-assimilável e oposto a identidade nacional” (Pierre, J. 2010).
“sumaqamaña, lulu[10]”
Desenterrar para tramarmos (considerações)
Esta é uma tentativa de desenterrar (ir à raiz e seu nós) desenrolar as formas nas quais subjazem nossos vínculos afetivos, com imaginário coletivo carregado desse racismo estrutural, que se perpetua e é dirigida, desde os Estados, as Nações, as políticas públicas, as instituições, meios de comunicação, discursos, a arte, a educação, a comunidade, o bairro, as casas, as verduras da sopa, as formas de lutar contra “o sistema”.
Essa construção coletiva adquire relevância, apresenta-se com cheiro a medo e a suspeita absoluta ao “marrom”, ao “negro”: encarna em uma pessoa e uma cor.
Assinalei exemplos de situações cotidianas nas quais atua-se com essa desconfiança por aqueles que racializam as pessoas de acordo a cor de seus corpos e a dúvida daqueles que são racializados por portar a cor.
Trago a reflexão de uma artista reiterada em todo o percorrido educativo próprio. Essa dúvida que sutilmente construída aparecia na forma de desprezo e assombro (microracismo).
“Estava começando o segundo ano da prática pré-profissional. Entusiasmada porque poderia ajudar a comunidade. Reconheço que sempre fui um pouco inquieta de querer fazer tudo. Também reconheço (agora) que um silêncio me travou a língua e quase abandono tudo. Era uma terça-feira, tinha prática no espaço de assistência à imigrantes. Começava a ação, a parte já não de teoria senão de atenção. Me senti arte do espaço. Lembro que era a segunda ou terceira vez que alí me sugeriram “o bom sentido da prática” como fazer uma entrevista, mas colocando ênfase em como deveria levantar o telefone e atender uma mulher imigrante sobretudo “boliviana”. A dúvida se fez tão grande, como era possível que eu nascida na Bolívia, tendo claro que sou boliviana ou bolita, não podia atender uma mulher imigrante boliviana? Nesse ínterim quase perco a língua, apesar de que perdi a dúvida.” (Mamani, Chana, nota de campo, 2019).
Esse racismo estrutural, estrutura sequelas nos corpos, pois se perpetua desde as ciências humanas, as formas de ver o mundo, classificar, criar significados e hierarquizar manter um disfarce.
Mesmo que às vezes nos surpreende sua aparição violenta, quase inimaginável, tal como menciona Sue (2010) “essa mensagem oculta” sempre existe. Esse binarismo que classifica, hierarquiza e saliva hoje cria rachadura na região de latinoamérica com uma tonalidade que se não persegue “bate”. Os últimos acontecimentos que ocorreram na República Dominicana (2003), Argentina (2015), Brasil (2016), e Bolívia (2019) são exemplo disso: a fragilidade institucional da democracia e a representatividade política em governos de esquerda/progressistas produziram uma desconfiança coletiva, pelos regozijos se fortalecem os fundamentalismos religiosos ou espaços de espiritualidade que em seus interstícios vomitam e recriam a geoetnização racial que denomina Jean Pierre (2018). Isto é um racismo que não só racializa os corpos, não só hierarquiza, “não há dúvida” e “sem piscar de olhos” aniquila tudo o que respira e representa tal corpo.
Descolonizando: Tecendo
“Companheiros: temos que decidir desde agora uma mudança de rota. A grande noite na qual estivemos submergidos, temos que sacudi-la e sair dela. O novo dia que está por vir deve nos encontrar firmes, alertas e resolvidos (…) Não percamos o tempo em ladainhas estéreis ou em mimetismos nauseabundos. Deixemos a essa Europa que não deixa de falar do homem ao mesmo” (Frantz, Fannon, 2010).
“O índio não é uma classe social, é uma raça, uma Nação, uma história, uma cultura. O índio é um povo oprimido e escravizado. O índio não tem que se integrar nem se assimilar a ninguém. O índio tem que se liberar. E a liberação do índio será obra do mesmo índio”. (Reinada, F. 2010, p. 75).
Ambos os autores decoloniais foram censurados em seu momento e ao se ver visíveis também foram encontrados nessas outridades. Nos trazem para estes tempos narrativas que também são ditas por aquelas comunidades que foram resistindo por sua memória ancestral e sua historicidade oral. Cujas raízes surgem em corporalidades marrons e negras, adquirindo talvez formas identitárias próprias dos territórios onde residem, enraízam e transam.
Em suas línguas podemos fiar o que em aguayos, vasilhas, simbolismos, comidas, bailes, colheitas, nos transmitiram nossas awichas, Reinaga dirá “cultura e não costume” (coincido). Agora veja, frente a um invento que perdura por cinco séculos, no qual dorme a história sangrenta de mais de 2.500.000 “selvagens” (em seu momento), que sem ambição, sem ódio, se encontram nessas sementes que se traduzem em milharais e batatas. Como, que, por onde? O que desenramamos se temos ecos que nos dizem “existe racismo reverso”?, “vocês também são racistas”, “somos abertos mas”, “tenho mais direitos porque sou originário/nativo”, “não sou racista, meu vizinho é paraguaio”.
Não há receita para isso foi a resposta de ambos os autores, assim como também o das velhas ancestrais.
Trata-se do sumaqamaña, diríamos hoje, e é começando a fazer rupturas com essa escravidão. Quebrar o binarismo ou a justaposição do mundo bom, do homem único, e o legítimo e da não pessoa, do mal, atrasado, ilegítimo. Nesse “mundo bom” totalmente abençoado pela igreja e sua religião, hoje vinha mais “pura” e mais voraz, mas sútil. Aquele homem bom que ainda sendo pobre talvez dormiria em um colchão, cartão ou calçada, mas “o outro” pobre por “sua cor, cultura” não tem direito ou não precisa, é forte, selvagem, “aguenta”.
Então, não se trata de uma reforma ou uma transformação econômica, pois sempre será quem ocupa lugares que outres não ocupam ou existe “o milagre” e ocupa será sempre “suspeito”. Exemplo disso é Milagro Salas, mulher, indígena, dirigente, sindicalista, historicamente perseguida e situada como “selvagem” e inclusive com conquistas -econômicas, políticas e sociais- históricos, reside a dúvida nela: “Ela, é uma ladra”, “mas, terá feito algo?”. Nesse “tecer” de suspeitas também estão líderes ou lideranças que ocupam cargos públicos e políticos e as que antes e depois de seu exercício planta-se a dúvida e se os sentencia.
Talvez se trata de reconhecer que antes de 1492 podia-se viver bem, ao menos tinha-se liberdade própria de não ter que pagar pra viver mais um dia ou ser objeto de procriações e reproduções constantes para povoar o subcurar a humanidade. A ruptura é essa cadeia, é essa divisão do mundo, da era das luzes, da literatura e das narrações da arte e artesanias, da música e do folclore, da cultura e dos costumes. Algo assim como a descolonização e que timidamente foi chamada desconstrução de algumas “coisinhas”.
Talvez o mais temível seja reconhecer os privilégios e sentir essa perda que não é outra coisa que aceitar o privilégio outorgado por essa herança moderna. Reparar a memória ancestral, transferindo recursos que foram históricos e milenares, tomar com as mesmas “seriedades”, “veracidade” e conhecimento desses territórios.
[Pois, sim! Claro que sigilosamente ou na tempestade, nos soprará essa voz, esse vento vestidos de Amazônia, do serrano, das montanhas, dos vales, esse vento constantemente nos perguntará: -Como le indix, le negre, le migrantx (a gente) confiaria(mós) no blanque/pomele?.,Porque deveria fazer isso?…se há línguas que matam e outras que traem…, se na pequena abertura de “bom gesto” ou na “culposa tolerância” se aproxima o transborde e as lágrimas que nos roubam a beleza?]
Autoras decoloniais, reconhecidas como feministas e outras que são feministas comunitárias, também expressam pontos importantes. O primeiro: reconhecer para o mundo patriarcal e capital que somos a metade deste mundo e damos/cuidamos a vida [11]. Segundo reconhecer o privilégio branco [12]/pomelo, pois não haveria uma verdadeira alianza, tecido ou articulação sonhada sob os slogans “inclusão/integração” de todas/todes senão existes ante todo o “reconhecimento”; e a “perda” não será outra coisa que dizer “ah, sim, é verdade”.
Nesse sentido, Identidad Marrón entendida como coletivo de pessoas marrons (hijxs, nietxs de indígenas/originários, camponeses, de imigrantes racializadas- internas ou externas-, suburbanas, faveladas, empregadas domésticas) que adquire uma constituição identitária e política, tenta desenrolar está “longa história”, instaurada no contexto argentino. Tenta como tal encadear possibilidade desde uma teoria e práxis própria vinda desde o sul.
A configuração como identidade política assinalado numa cor tem como objetivo visibilizar o racismo estrutural existente: visibilizar que nossos ancestrais não desceram dos barcos, sempre estiveram aqui.
Por que falamos de racismo estrutural? Devemos irromper desde nossas próprias línguas porque é necessário falar sobre racismo, em tempos em que corre o ódio e nele se desprendem não só agressões verbais ou pitorescas com tom racista, senão que levam a aniquilação dessa corporalidade. Esse enramado que em geral “acreditamos” que é natural inclusive quando às vezes o politicamente correto faz com que o que pensamos não coincida com o que dizemos, tem raízes de mais de cinco séculos. Por exemplo, naturalizamos tanto que pode suceder confundir “cliente com advogado”, paciente com médicx”, porque opera a racialização dos corpos, do trabalho e das relações. É mais provável que o pobre (que o é mas é a estrutura) seja o que comporta o corpo “mais escuro” e é o histórico “assistido”. Este pobre se transforma um perigo ou em suspeita caso porte traços indígenas e no instante supomos que é de outro país, esse país porta uma nacionalidade limítrofe e andino. Também acontecesse que dentro do processo de colonização nos encontramos com a colonização própria, é dizer que não localizamos onde possa existir a negação ou temos práticas de assimilação por sobrevivência, pois é claro que está que o mundo é hostil. Frente às agressões racistas escutamos que nos dizem “negros”, “escuros”, “morenos”, “café com leite”, “bolivianos de”.
Foi assim que antes de conhecer as palavras tivemos que abrir e deixar que o sangue circule pelas veias, nesse fluir invadiam não só as sequelas senão as perguntas:
[Onde estamos, marrom? Quem escreve sobre anti-racismo? Onde buscamos respostas? Quanto vale sua culpa? De onde vem o ouro da sua família? Quem chega a ler? Quem são os que geram empatia? Quantos somos? O que é um espelho? De que cor é o periférico? As prisões? As favelas? Onde estamos?, Onde você vê sua cor? Quem são seus espelhos? Onde estamos nos livros de arte? Onde estamos? Em quais imagens? Novas, ou ainda nus, em campos, como aquelas fotografias de séculos passados? Onde estamos? Nas cidades, ou nas metrópoles? Onde crescemos? Quanto você se distanciou de seus pais para chegar até aqui? Quando você aprendeu a negar suas origens, marrom? E seus traços? Evitar os espelhos? Apagar sua ascendência? É a arte um ofício dos brancos? Quanta vingança existe em seu sangue, marrom? É nossa fortaleza? Ou a dívida da dor que herdamos? Quando você deixou de ver seus pais para poder entrar aqui? Quantas horas de trabalho? Quanto tempo tiveram para chorar? Onde estamos, marrom? Que se transforma em combustível? Que dor, que ódio, que negação? Quanta vingança existe em teu sangue, marrom? Na de teus pais? Na dos teus avós? Questionar o racismo é canibalismo? Buscar justiça é canibalismo? Quantos viemos de gente que estiveram anos de sua vida fazendo a mesma atividade, dia trás dia? Sem salário apropriado, sem contribuições. E seus filhos? O racismo pergunta sua identidade? E os filhos de seus filhos? O racismo pergunta? Temos as respostas? Quanta justiça há em teu sangue, marrom? (Manifesto, elaboração Identidade Marrom, mostra de “para todes tudo. Todes os Marrons”, CCK, março 2020)].
E se não… o que nos resta senão nada mais que olhar com os dois olhos à nossa história? E se não… que nos resta senão que reconheçam essa “herança catastrófica”, tão, mas tão trágica e impossível de parafrasear ou narrar? E se não… o que nos sobra se não é também reconhecer (em nós) que nos foi entrelaçado a colônia/colonização nas próprias veias? E se não… o que nos resta senão é trazer desde atrás de (nossas) nucas e de dentro do coração a ferida atroz na qual foi forjado uma história e nela a zoação, a piada, a sangue, a noite larga? Se a dúvida colheu medos e ódios assinados por um inventor chamado raça, perpetuando-se na estrutura -no solo- da pele e inclusive nos despojou de nossa cor (identidade). Por que o regozijo de sua permanência e não a inovação do amor?
Glossário e bibliografia no texto original publicado no LATFEM, acesse:https://latfem.org/racismo-estructural-susceptibilidad-veracidad-o-que/
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