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Resistência Não Domesticada: Brisa Flow

Mineira e descendente de mapuches, Brisa Flow se destaca no rap nacional com a sua lírica incisiva, letras anticolonias e o sentimento de coletividade latino americano.

Marichiweu significa 10 vezes venceremos. O termo se refere às vitórias do povo mapuche sobre os espanhóis durante o período da colonização da América Latina. Habitantes originários do sul do Chile e do sudoeste da Argentina, os mapuches formam uma etnia indígena responsável por capítulos importantes da história da América Latina. Eles resistiram por mais de 300 anos a invasão europeia no continente, foram os responsáveis pela criação dos primeiros sindicatos no Chile e tiveram uma forte atuação durante a ditadura Pinochet, que ocorreu de 1973 a 1990.

Tudo isso eu aprendi durante a entrevista com a Brisa Flow.

Conversamos no final de janeiro, na mesma semana em que tive o meu celular furtado na CPTM. Portanto, o áudio da entrevista foi gravado em um velho android, que uso em situações de emergência e que foi capaz de aguentar o papo, que tivemos no final de janeiro de 2020.

Toquei a campainha por volta do meio dia e Davi, seu filho de 7 anos, abriu a porta.

“Oi, posso entrar?”

“Pode sim”

Brisa mora no Butantã e estava varrendo a casa.

“Filho, oferece uma água para a visita como a mamãe te ensinou”

Minutos depois, ela sentou comigo na mesa e começamos a entrevista. Conversamos por 1 hora durante aquele início de tarde.

“Mês de férias das crianças é uma correria, mana.”

Brisa de la Cordillera Collío Inzunza, mais conhecida como Brisa Flow é descendente dos mapuches e recebeu seu nome em homenagem ao maior conjunto de montanhas da América do Sul: a cordilheira dos Andes. “Eu sinto, sempre senti essa força mapuche que eu tenho de viver, reviver e sobreviver. Acho que contar as vitórias e falar desses parentes que estão na luta, há muito tempo é uma forma da gente trazer essa força.”

O legado mapuche permanece vivo na resistência latino americana. Em outubro de 2019, a bandeira mapuche foi um dos símbolos dos protestos que ocorreram no Chile contra o presidente Sebastião Piñera. Os manifestantes derrubaram as estátuas dos colonizadores espanhóis e hastearam a bandeira colorida do povo originário do sul do Chile. Entre as pautas dos protestos populares estavam as políticas neoliberais do governo Piñera e a desigualdade social.

Séculos anteriores, o país já havia presenciado insurreições de caráter popular. A Guerra de Arauco foi um desses episódios. Iniciado em 1550, o conflito foi marcado pelas tensões entre os colonizadores espanhóis e os povos originários chilenos, entre eles mapuches, huilliches, picunches e cuncos.

Porém, o protagonismo da resistência indígena foi dos mapuches, em especial durante o comando do líder militar Lautaro. Conhecido por sua habilidade em traçar estratégias militares, Lautaro nasceu em 1534 e aos 11 anos foi capturado pelos espanhóis, servindo como prisioneiro durante 6 anos.

De acordo com o artigo O Genocídio Indígena na América Latina, publicado na revista Hispanista, Lautaro foi responsável pelas principais vitórias mapuches durante a primeira etapa da Guerra de Arauco. Mesmo após a sua morte, em 1557, o exército mapuche continuou enfrentando os espanhóis em um conflito que durou cerca de 300 anos e que terminou com a permanência mapuche no território.

Porém, no século XX o Chile presenciou mais um episódio violento da sua história: a ditadura militar do general Pinochet. Nesse período, os pais de Brisa Flow moravam em Santiago e presenciaram os primeiros anos do golpe. “Minha mãe estava assustada porque ela morava em uma república com vários estudantes e era mais envolvida no movimento estudantil. Meu pai não, mas o meu pai tem o fenótipo indígena mais marcado”.

Eles saíram do Chile em 1987 e após permanecerem por um breve período na Argentina, se instalaram no Brasil.

“Minha mãe veio comigo na barriga e atravessou a fronteira. Eu sei o que ela me conta de história”. A primeira parada dos pais de Brisa foi em São Paulo, mas logo depois eles se estabeleceram em Minas Gerais, estado onde Brisa nasceu. “Alguém deu uma passagem de ônibus para eles irem pra Minas, onde o meu tio morava e ela me teve lá. Foi isso, meus pais são artesãos, então eles vieram sem nada.”

Considerada uma das ditaduras mais violentas da América Latina, a ditadura chilena vigorou de 1973 a 1990 e teve início no dia 11 de setembro, com o bombardeamento do Palácio da la Moneda. No local estava Salvador Allende, o primeiro presidente socialista eleito de forma democrática no mundo. “Tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a perfídia, a covardia e a traição”, foram umas das últimas palavras ditas pelo presidente socialista, que passou seus últimos instantes no Palácio de La Moneda resistindo ao golpe promovido pelos militares no país.

“Tenho fé no Chile e seu destino. Superarão outros homens este momento cinzento e amargo em que a traição pretende impor-se. Saibam que, antes do que se pensa, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor.” O último discurso de Allende foi transmitido pela Rádio Magallanes no dia do golpe. O presidente socialista morreu durante o episódio, e foi apenas uma das primeiras vítimas da ditadura.

No campo cultural, o regime chileno também deixou o seu rastro de violência. Victor Jara foi um cantor, compositor e ativista chileno, assassinado pelo regime militar e que influenciou de forma ideológica as letras de Brisa Flow. “Pra mim, o Brown e o Victor Jara estavam falando a mesma coisa de pontos de vistas diferentes, de lutas e opressões diferentes.”

A música Veias Abertas, que compõe seu primeiro disco Newen contém citações de uma das mais famosas canções de Jara. Por el Derecho de Vivir en Paz faz parte do álbum homônimo lançado em 1971, dois anos antes da instalação do regime militar chileno.

Por ser uma das principais figuras culturais da esquerda chilena, Victor foi detido no dia do golpe e levado para o Estádio Chile, local utilizado pelos torturadores como um campo de concentração dos oponentes políticos do regime. O artista teve suas mãos quebradas pelos torturadores para que não pudesse mais tocar violão. Porém, mesmo com as diversas sessões de tortura, Victor escreveu o seu último poema intitulado “Estádio Chile” e entregou para os seus companheiros antes de falecer.

“Somos cinco mil aqui
Nesta pequena parte da cidade
Somos cinco mil
Quantos somos no total
Nas cidades e em todo o país?
Só aqui
Dez mil mãos que semeiam
E fazem as fábricas andarem
Quanta humanidade
Com fome, frio, pânico, dor
Pressão moral, terror e loucura” 

Estadio Chile, Victor Jara

Victor morreu no dia 16 de setembro de 1973. O Estádio Chile foi renomeado para Estádio Victor Jara, em homenagem ao cantor e as diversas vítimas da repressão militar. De origem camponesa, o cantor começou a sua trajetória na arte nos anos 50, década em que também conheceu Violeta Parra.

Referência da música e da arte popular chilena, Violeta Parra apoiou Victor durante seus primeiros anos de carreira na música. Já nos anos 60, Victor participou da Peña de los Parra, evento criado pelos filhos de Violeta com o objetivo de promover encontros culturais entre artistas chilenos.

 

Brisa Flow também foi influenciada pelo trabalho de Violeta. “Eu gosto muito da Violeta. Tem aquela música “Arauco Tiene una Pena”, ela fala da história de Lautaro e da primeira vitória dos araucanos.”

A primeira música do seu segundo álbum, Selvagem como o Vento, faz referência ao nome do filme Violeta se Fue a los Cielos. Lançado em 2011, o filme aborda a trajetória artística e a vida pessoal de Violeta Parra, que acabou cometendo suicídio em 1967.

Além dos artistas chilenos, musicalidade mineira também aparece com frequência na obra de Brisa. Um exemplo disso é a canção Câmara de Ecos, que possui o sample da música Um Girassol da Cor dos Seus Cabelos, lançada por Lô Borges e Milton Nascimento em 1972, no álbum Clube da Esquina.

“Eu gosto muito da cena mineira, porque eu acho que é um rolê que é muito único, principalmente o rap mineiro.”

Gustavo Pereira Marques, mais conhecido por Djonga, é um dos principais expoentes do rap mineiro. Com os seus três álbuns de estúdio, Heresia (2017), O Menino que Queria ser Deus (2018) e Ladrão (2019), Djonga alcançou uma posição de destaque no rap, sendo um dos principais nome do gênero no Brasil.

Brisa e Djonga já trabalharam juntos. O single 25g foi lançado em 2016 e contou com a produção de Givnt. A música fala sobre o cotidiano nas regiões periféricas de Belo Horizonte, local onde ocorreram as gravações do clipe. “A cultura em Minas é fantástica, pena que o Brasil ainda é muito consumidor só do eixo Rio-São Paulo, infelizmente não vê tanto. Mas agora a gente tem o Djonga que está abrindo caminhos para Minas Gerais, mas ainda é foda para as mulheres”, ressalta Brisa.

 

Além das contribuições com a Brisa, Djonga também participou de um projeto que reuniu grandes nomes do rap mineiro. O coletivo DV Tribo surgiu em 2015 e contou com a participação de Djonga, Clara Lima, Coyote Beatz, FBC, Hot e Oreia.

“A Brisa me ensinou muito sobre música rap, da época que ela fazia parte da Família de Rua. Ela foi uma referência pra nós que estávamos ali começando de quase tudo: flow, técnica, o que se falar, como se agir dentro da cultura”, afirma FBC, rapper mineiro autor dos álbuns Padrim (2019) e S.C.A (2018), cuja capa faz referência a outro trabalho produzido pela música mineira: o álbum I.N.R.I da banda de death metal Sarcófago.

Brisa também frequentou o Duelo de MCs, um dos principais movimentos do rap mineiro, e foi durante esse período que escolheu o seu nome artístico: Brisa Flow. “Eu me conecto com a música interior e eu faço o verso que vai surgindo de fluxo. Por isso que é Brisa Flow, porque eu briso no flow do fluxo.”

Criado em 2007 pela Família de Rua, o Duelo de Mcs é uma das das principais batalhas de rap freestyle do Brasil e ocorre em um dos principais pontos da capital de Minas: o Viaduto Santa Tereza.

 

“A cena do rap de Minas Gerais é muito foda, desde as antigas. Aqui é o berço do maior duelo de mcs do mundo, do maior encontro de hip hop do mundo, que é a Família de Rua Duelo de Mcs, então não tinha como ser menos que isso. A cena de Minas Gerais ela sempre foi foda, só agora que o povo ta reconhecendo, mas ela sempre foi a mais incrível de todas”, afirma Gustavo Aguiar, mais conhecido como Oreia.

Além dos seus trabalhos como o rap, Oreia também foi um dos fundadores do Sarau Vira Lata, projeto responsável por levar poesia para diversos pontos da Belo Horizonte por meio de encontros itinerantes. “Eu ouvia a Brisa Flow desde os primeiros dias que eu ia no Duelo de Mcs. Ela é referência no rap pra muita gente, pra mim, pra BH e ela manda muito.”

Enquanto eu redigia esse texto, Djonga acabava de lançar mais um som. O single Sexta foi produzido por Coyote Beatz e aborda a importância do Duelo de MCs para o rap mineiro.

“Não sei por onde se esconde a tristeza

Mas a felicidade tem casa: viaduto Santa Tereza”

- Sexta, Djonga (2020)

Já FBC afirma ter aprendido muito com Brisa Flow desde o início da sua carreira dentro do rap. “Eu acho que a Brisa também foi uma professora pra mim, me ensinou muito sobre feminismo, me ensinou muito sobre a luta da mulher dentro do hip hop. Eu acho que é isso, Brisa Flow pra mim vai ser sempre um exemplo imortal.”

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DV Tribo. Da esquerda para direita: Hot, FBC, Clara Lima, Coyote Beatz, Oreia e Djonga. Foto: Reprodução

Fora do rap, a cena musical de Minas Gerais também possui artistas que estão ganhando cada vez mais visibilidade. “Eu acho que disso nasceu muita arte foda, hoje por exemplo, em Sabará nós temos uma mulher incrível que é a Nath Rodrigues. Ela é instrumentista, compositora e uma mulher muito foda da música que tá ganhando o mundão. Eu acho isso é o resultado desses lugares, desses territórios de luta.”

Nath Rodrigues e Brisa Flow viveram em Sabará, município localizado na Região Metropolitana de Belo Horizonte. O local foi fundado durante as expedições dos Bandeirantes em busca de ouro. Eles foram responsáveis pelo genocídio de diversos indígenas no Brasil e pelo extermínio de quilombos durante o período colonial. “Toda essa história pesada de genocídio, esconde uma energia muito forte, uma energia de ancestralidade. Sabará é esse lugar de grande luta, de história do povo negro e do povo indígena.”

Fundadora do coletivo Negras Autoras e vencedora do Festival da Canção Todos os Sons em Itabirito, Nath Rodrigues é um dos grandes nomes da nova MPB brasileira. Multi-instrumentista, compositora, cantora e autora do álbum Fractal, lançado em 2019, Nath enfatiza a influência da musicalidade mineira para a nova geração de artistas da região. “Eu acho também que a gente carrega traços de subverter algumas coisas na harmonia, inconscientemente até, e isso tem a ver com a música que a gente já consumiu com Clube da Esquina, com Milton, com essa sonoridade montanhosa.”

A artista também ressalta a importância do trabalho de Brisa Flow para a música. “Eu sinto ela com o coração aberto pra acolher pra se abrir para a convivência, uma convivência saudável com pessoas diferentes e isso aparece muito na música dela. A forma com que ela versa, o jeito que ela canta que é um doce incisivo, isso me inspira muito. Eu fico acompanhando ela de longe, acho maravilhoso.”

Brisa Flow possui dois álbuns de estúdio: Newen (2016) e Selvagem como o Vento (2018).

O primeiro álbum foi lançado logo após o nascimento do seu filho. “Eu tava toda nesse processo de me amar mais, tive todo esse problema de depressão pós-parto, de puerpério, e ai o álbum vem justamente nesse contexto de luta. Newen, que significa força em Mapungundum.”

A temática da maternidade aparece em diversos momentos neste trabalho. O álbum se inicia com uma mãe mapuche cantando em seu idioma nativo, o Mapungundum, sobre o assassinato do seu filho que estava defendendo o seu território e acabou sendo morto. Na música, Brisa retrata a repressão em diversos momentos históricos: desde a colonização, até os genocídios promovido pelo Estado nas periferias da América Latina.

“Vi de longe você chegar em seu grande barco
Depois em cavalo, pela terra
Vi de longe você chegar, matando meu povo
Escravizando outro, fogo contra flecha
Vi de longe você chegar em tanques de guerra
Fogo en la moneda, no mapocho corpos
Vi de perto você chegar
Sirenes vermelhas na comunidade, anunciando mortos”

- Newen, Brisa Flow (2016)

Mapocho, referido na letra, é o rio localizado em Santiago, que foi utilizado pela ditadura militar para despejar corpos das vítimas assassinadas pelo regime. De acordo com o relatório oficial entregue pela Comissão Valech em 2011, durante o governo Pinochet mais de 40.000 civis foram vítimas da violência promovida pela ditadura chilena.

Já a segunda canção, Veias Abertas, conta com a participação de Débora Maria, fundadora e coordenadora geral do Movimento Independente Mães de Maio. Em 2016, Débora teve seu filho Edson Rogério Silva dos Santos, 29, assassinado durante os Crimes de Maio. Edson era gari e funcionário de uma empresa que trabalhava para a Prefeitura de Santos. “Foi a partir da dor e do luto gerado pela perda de nossos filhos, familiares e amigos que nos encontramos, nos reunimos e passamos a caminhar juntas. Nossa missão é lutar pela verdade, pela memória e por justiça para todas as vítimas da violência”, ressalta Débora sobre a atuação das Mães de Maio.

Os Crimes de Maio ocorreram em 2006, quando a Secretaria de Administração Penitenciária decidiu transferir 765 presos para a penitenciária 2 de Presidente Venceslau, no interior do estado de São Paulo. Em resposta a medida, o Primeiro Comando da Capital (PCC) organizou diversas rebeliões em 74 presídios do estado, já que entre os 765 presos haviam membros da facção. A polícia respondeu os ataques saindo às ruas das periferias do estado de São Paulo. 564 pessoas morreram entre os dias 12 e 21 de maio, segundo o relatório Análise dos Impactos dos Ataques do PCC em São Paulo, realizado em 2009 pelo Laboratório de Análises da Violência da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre os civis, 505 foram mortos e 97 ficaram feridos. Já entre os agentes públicos, 59 morreram e 13 ficaram feridos, totalizando 564 mortos e 110 feridos em um período de apenas 10 dias.

Quando os ataques ocorreram, eu tinha 7 anos. Me lembro do pavor que tomou conta da cidade durante esse período, mesmo sem entender completamente as suas motivações.

Mas hoje, fica evidente as razões do pânico. De acordo com a Comissão Nacional da Verdade, a ditadura militar brasileira matou 434 pessoas em seus 21 anos de existência. Portanto, a democracia brasileira conseguiu matar mais pessoas em um período de 10 dias, do que a ditadura durante os seus 21 anos de duração.

Porém, esse número final da CNV, excluiu diversos grupos que sofreram com a repressão do regime militar, como por exemplo, os indígenas. Em um apêndice do relatório, consta a morte de mais de 8.000 indígenas de diferentes etnias, que foram assassinados por meio de torturas, massacres, entre outros métodos.

 

“Eu resolvi botar uma fala da Débora na minha música no Newen, que é na música Veias Abertas e acho que tem tudo a ver com Latino América e com Galeano. No final da letra ela fala ‘Me ajuda a barrar o rajar das metralhadoras’, é uma poesia dela muito foda, porque a Débora é uma poeta foda.”

O movimento das Mães de Maio surgiu em 2006, com o objetivo de encontrar respostas para a morte das centenas de civis. Mas ao longo dos anos foi acolhendo outros mulheres que tiveram seus filhos mortos pelas ações de extermínio promovidas pelo Estado brasileiro, na atual Era das Chacinas.“O trabalho da Brisa Flow é maravilhoso. Com a música, ela ajuda a engrossar o coro na cobrança da luta pelas vidas dos nossos filhos, pela vidas das mulheres e por um país mais justo, igualitário e menos punitivo”, conclui Débora Maria.

Já o nome da música faz referência ao livro Veias Abertas da América Latina escrito por Eduardo Galeano, em 1971. A obra retrata a história da América Latina, analisando a exploração econômica desde o período colonial até o período do lançamento do livro. Brasil, Chile, Argentina e Uruguai baniram o livro durante a época de lançamento, pois os países passavam por ditaduras militares contrárias ao pensamento anticolonial presente na obra de Galeano.

“Eu gosto muito do Galeano, mas chegar no Galeano também me fez chegar em outras pessoas. Tipo como Racionais faz com a gente. É aquela coisa do tráfico da informação, do poder da arte, que eu acho fantástico.”

 

Em 2018, Brisa também lançou outro trabalho inspirado em Galeano. A música “Dias e Noites de Amor e Guerra” faz referência ao livro de mesmo nome escrito por Galeano em 1978. “Eu fui ler o Dias e Noites de Amor e Guerra, em uma época que eu tava lá no Jabaquara, recém mãe solteira, com o meu filho, inclusive fiz essa música e gravei o clipe lá, foi muito representativo pra mim.”

Newen conta com 9 músicas. Além do nome em Mapungundum, o álbum também traz outras influências ancestrais de Brisa com as montanhas chilenas em tons roxeados na capa.

A primeira composição para o álbum foi As de Cem. A canção foi lançada em 2015, um ano antes da estreia de Newen. “Eu fiz a primeira música As de Cem, porque eu tava sem grana. Tinha chegado em São Paulo, arrumei um trabalho de telemarketing e fui mandada embora grávida. Eu não conseguia trampo, porque o meu filho tinha alergia a leite e eu não podia deixar ele na escola muito cedo, tinha que amamentar.”

Nós sempre correndo atrás do prejuízo
Ma-ma-mãe faz a ma-ma-mãe fez
Nós dando conta das contas do mês
Dupla jornada desde os dezesseis

- As de Cem, Brisa Flow

As outras músicas de Newen, Presença Ausente, Natureza Morta, Veneno, Volúpia, Da um Zoom e Eu Tenho que Ir retratam os problemas enfrentados pela mulher independente que apesar das diversas violências cotidianas, causadas pelo machismo e pelo racismo, luta para conquistar o seu espaço na cena.

Brisa também fala dos seus desejos sexuais, dos dilemas causados pela maternidade e da discriminação enfrentada pelos indígenas no continente. O álbum possui um instrumental marcado pelo resgate da ancestralidade da artista e também pelos trechos em espanhol, que acompanham grande parte das produções de Brisa Flow.

“O Davi já tinha uns 2 anos, quase 3 quando saiu o meu primeiro disco. Foi luta, mas foi um processo. Eu tava em uma época meio bad vibe, tentando me dar forças e não é à toa que o disco se chama assim.”

Já Selvagem como o Vento foi lançado em 2018 e apresenta uma das canções mais populares da artista: Fique Viva. O clipe da música foi gravado na aldeia Yvy Pora, localizada no bairro do Jaraguá, na zona oeste de São Paulo, e contou com a participação de Sônia Barbosa Ara Mirim, liderança guarani.

“Quando eu fiz o Selvagem como o Vento, eu já tinha aprendido a mexer nos programas, já tinha aprendido a me gravar, era uma mulher mais madura, e vi que ser mãe tinha me trazido muita coisa, muito Newen. Então ele vem com esse processo: ganhei a força e agora ninguém me domestica.”

O disco foi lançado após a eleição do atual presidente da República, Jair Bolsonaro, e devido a esse momento, uma das mensagens centrais do disco é a lembrança de que a América Latina é um território de lutas e resistências desde o período da colonização. Portanto, o projeto político defendido pelo atual presidente é algo que já vem sendo executado há muito tempo, com o genocídio dos povos indígenas e da população negra no Brasil, e que diversos grupos já estão organizados enfrentando as violências cotidianas aplicadas pelo Estado.

“Por mais que Fique Viva é a música que mais bombe, a mensagem central é do Selvagem como o Vento: que o medo não paralise o movimento. Eu acho que essa é a frase do momento que eu tava.”

Selvagem Como o Vento, Brisa Flow (2018)

“Essa terra tem sangue dos ancestrais
Estado de alerta
Fique viva, se prepare
São dias e noites de amor e guerra
Fique viva, fique viva!”

- Fique Viva, Brisa Flow

O álbum conta com 11 faixas: Violeta Se Fue, Fique Viva, Câmara de Ecos, Grillz, Chave do Ponto G, Fumaça e Liquidez, Devidamente Controlada, Resistência Não Domesticada, Selvagem Como o Vento, Zona de Segurança e Caboclo Foi pra Selva.

“Meu disco saiu no Estadão sendo um dos melhores do ano. Eu estava lá no Chile passeando com a minha tia, dando um rolê perto do museu da Violeta Parra e aquilo fez muito sentido pra mim. Estava pensando Será que alguém tá escutando o meu disco no Brasil? porque eu estava lá no lançamento e eu não tinha aliança com o Spotify, nem nada. Ai, saiu a notícia do Estadão, eu fiquei muito feliz.”

Além de trabalhar diretamente com música, Brisa Flow também atua no ensino. Atualmente, cursa o último semestre da Licenciatura em Música e já trabalhou com educação tanto em Minas Gerais, quanto em São Paulo.

“Eu fui trabalhar com oficinas de hip hop em várias escolas municipais de Belo Horizonte. Trabalhei com isso por dois anos direto. Trabalhei no EJA, no Jovem Adulto, no Ensino Médio, com os pequenininhos e com todas as idades. Então eu vi como a educação era realmente largada, e com o hip hop eu percebi que as crianças curtiam muito a áurea e aquilo foi me dando uma autoestima. Eu larguei o telemarketing, e ai eu fiquei dois anos só de oficina em Belo Horizonte.”

Brisa entrou na faculdade de música com o objetivo de aprender mais sobre composições e partituras. Porém, o ensino acadêmico possui o olhar eurocêntrico para a transmissão de conhecimentos, o que refletia nas músicas estudadas por Brisa, durante esse período.

“Eu vi que eu só ia aprender coisas wagnerianas e esse não é o foco. Imagina, o Brasil poder usar o Wagner agora igual a galera do Hitler usou como referência de música de fundo. Não era a minha ideia de composição, nunca foi, nunca quis fazer música eurocêntrica. Eu entrei na academia pra aprender a fazer as partituras das músicas que eu fazia, então eu escolhi composição e vi que isso não ia rolar, que na verdade eles estavam impondo fazer igual a galera da época do neoclassicismo, do barroco e eu não estava a fim. Então eu sai, fui para a licenciatura, que eu achei que tinha mais a ver com o que eu já fazia.”

Após concluir a Licenciatura, Brisa pretende seguir na carreira acadêmica e fazer um Mestrado sobre o tema da decolonialidade no ensino de música.“Então eu vou pesquisando bastante coisa, participando de congressos, ainda estou no início. Quero que vire um mestrado, mas eu estou tendo essa dificuldade da academia de me aceitar. Eles me barram de todas as formas possíveis.”

Outro ponto apresentado por Brisa Flow, é o racismo da academia tanto com músicas

índígenas, quanto com as músicas tradicionais das periferias brasileiras, como o funk e o rap.

“Se tornou uma luta mesmo a partir do momento que eu tive muitos embates com professores que falavam que música a gente não vai aprender no rap da esquina, nem no funk da esquina. Muitos embates pesados na sala de aula, inclusive com alunos.”

Além de Brisa, outros indígenas também utilizam o rap como uma ferramenta de expressão e de luta contra as opressões enfrentadas no cotidiano. Um desses exemplos é o grupo Oz Guarani. Criado no Jaraguá, em 2014, durante uma reintegração de posse o grupo atualmente é formado por Jefersom Xondaro e Mano Glowers.

“A gente pensou em fazer o rap em defesa dos nossos direitos, do nosso povo, da nossa luta, da demarcação. Então, a gente fez uma letra de música e como era na época de conflitos, brigas judiciais, isso meio que levantou todo mundo, os jovens e até mesmo as pessoas mais antigas”, afirma Jefersom.

Duas semanas depois de entrevistar a Brisa, fui ao Jaraguá para conversar com o Jefersom sobre rap indígena. Porém, o que chamou a atenção durante aquele dia foi a ação da construtora Tenda no local.

“A empresa Tenda comprou esse local, que tem muita mata nativa. Mas durante a divulgação do documento oficial, a Tenda alegou que não tinha mais nenhuma mata nativa, que não tinha nenhum animal silvestre. Então eles iam construir prédios de luxo aqui e ao derrubar árvores, derrubaram mais de mil árvores, que ao total iam passar mais de 4 mil. Ao sabermos disso, nós, o povo guarani daqui do Jaraguá, levantamos a cabeça e fomos ocupar esse espaço, que a gente tá lá até agora.”

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) prevê que empreendimentos realizados em um raio de até oito quilômetros de uma Terra Indígena (TI) devem ser comunicados previamente à comunidade indígena. Já a Prefeitura de São Paulo afirmou que a ação da construtora Tenda está regularizada, apesar do embargo de sete dias dado pela gestão de Bruno Covas (PSDB). Porém, a administração de Terras Indígenas é de responsabilidade federal e deve passar pelos órgãos responsáveis antes de qualquer medida.

“Inclusive para não chamar a atenção eles começaram a derrubada das árvores de madrugada, não foi nem de dia. Quando a gente foi procurar saber melhor, o pessoal já tinha derrubado mais de mil árvores, que no total seriam mais de 4 mil.”

A Terra Indígena Jaraguá é a menor do Brasil. O território possui apenas 1,7 hectares, espaço menor que 2 campos de futebol, e abriga 6 aldeias indígenas: Tekoa Ytu, Tekoa Pyau, Tekoa Itawera, Tekoa Itakupe, Tekoa Itaendy e Tekoa Yvy Porã. A etnia dos indígenas do Jaraguá é a Guarani, que também está presente em outros país es da América Latina como o Paraguai, Bolívia e Argentina. No Paraguai, a língua guarani é um dos idiomas oficiais do país, ao lado do espanhol.

“Muitas pessoas tem o conhecimento só pelo livro e o livro não é mais desse dia atual. Então o que o povo brasileiro aprende? O que ele aprende dentro das escolas e dentro das faculdades? Ah, o índio anda pelado, o índio vive no mato, mas só que a gente tá em 2020 e a gente não tá mais como antigamente. Hoje em dia, tem muitos jovens que estão cursando a faculdade e se formando como médico, professor, usando celular, andando de roupa, mas nem por isso eles deixaram de ser indígenas.”

Além de toda a desinformação e do racismo enfrentado no Brasil, a atual gestão do governo federal também já deixou nítido o seu posicionamento contra a causa indígena. Mas Jefersom, assim como Brisa, também destaca que a resistência indígena possui raízes profundas na história da América Latina.

“Por mais que a gente saiba que o presidente ele é contra os povos originários, a gente vem se acostumando, porque ele não é o primeiro e não vai ser o último. A gente já vem enfrentando isso há 520 anos. Desde que começou a invasão existe o desrespeito, existe o preconceito contra os povos originários. É o fim? É claro que não é o fim. Tem muitas e muitas etnias que estão na resistência, são mais de 230 línguas faladas hoje no Brasil, mais de 200 povos diferentes aqui.”

Assim como os Mapuches não foram vencidos, para Brisa Flow, os indígenas desse lado do continente também não foram. “O Brasil também não foi vencido, vários povos não foram vencidos. Eu aprendi vendo as histórias do povo Mapuche e vejo que isso também acontece do lado de cá.”

Nos últimos anos, os guaranis também enfrentaram outros problemas. Como por exemplo, a Portaria 683, do Ministério da Justiça, que visava reduzir o tamanho da Terra Indígena do Jaraguá. Em resposta a medida, os guaranis realizaram manifestações na Avenida Paulista, ocuparamo Escritório da Presidência da República, além de terem desligado a Torre de Televisão do Pico do Jaraguá. Nesse período, o grupo Oz Guarani produziu, em parceria com Wera MC, a música Pemomba Eme.

“Eu acho que o Brasil tem essa potência, foda que é um país muito grande e as políticas aqui são muito opressoras com os povos originários. Então eu acho que é importante contar as vitórias e as resistências. A minha relação com isso é aprendizado, sempre. Escuta e aprendizado”, afirma Brisa.

A luta enfrentada pelos indígenas é diária. Além da disputa no campo político, como a portaria do Ministério Público e as ações da construtora Tenda, enfrentadas pelos guaranis de São Paulo, os indígenas também enfrentam o apagamento das referências acadêmicas, o racismo cotidiano, o machismo com os corpos femininos indígenas e diversas questões existentes na América Latina desde a invasão europeia no continente.

Porém, com todo o legado de mais de 500 anos de resistências das milhares etnias indígenas espalhadas pelo território latino americano, a certeza de que a luta não pode enfraquecer, permanece. Pois assim como disseram os Mapuches após a vitória sobre os espanhóis na Guerra de Arauco: Marichiweu, 10 vezes venceremos.

Por isso, o trabalho desenvolvido por Brisa Flow é fundamental para o hip hop. Ela nos lembra que as resistências estão articuladas há muito tempo na América Latina, seja na figura das mães que lutam por justiça, seja nos indígenas enfrentando as invasões europeias no seu território, seja por meio da cultura hip hip que sempre se posicionou contra as opressões praticadas pelo Estado. A resistência ficará viva, independente de qual seja o inimigo.

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Artigo Publicado no site Descolonizarte.com   e disponibilizado para nosso blog pela autora.

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